>>12507Talvez isso seja consequência do pensamento de Marx, à época. Os comunistas do século XIX pensavam que seria possível fugir da centralização urbana e ter a população mais esparsamente distribuída. Esse conceito é defasado hoje, pois sabemos que não é possível ter planejamento residencial sem concentrar os cidadãos ao redor de seus empregos, que estarão amontoados em células. A forma mais viável, até onde eu sei, de reduzir as diferenças entre o campo e a cidade hoje, é urbanizar a infraestrutura rural. A China, com todas as suas ressalvas, está gradualmente encontrando sucesso com suas cidades planejadas.
>>12527>sobre a sobrevivência de uma empresaEu gosto de dizer para quem está começando seus estudos marxistas que há três livros fundamentais para compreender o comunismo: o Manifesto, para saber o que os comunistas querem; o Capital, para compreender como nossa organização político-econômica funciona hoje (mais precisamente, como funcionava no século XIX e o que herdamos disto: praticamente tudo); e o Gothakritik, para entender o que os comunistas
não querem. No Gothakritik, Marx elucida que, quando diz-se que a classe operária há de se apropriar de tudo o que produzem, ele não quer dizer que os trabalhadores deverão colocar no bolso o mais-valor. Ainda é necessário manter um planejamento de reinvestimento para crescimento e manutenção da empresa. No caso de imprevistos que excedem o orçamento de emergência, o Estado ou outras instituições podem coletivamente amortecer o estrago com subsídios externo, algo que já existe hoje mas de maneira muito mais nefasta. Cada caso é um caso. O meu argumento é que ainda haverá um excedente de produção, ele apenas não será caracterizado como lucro justamente por não ser apropriado de maneira privada. Digo isto em termos iniciais, em uma sociedade transitória, pois só teremos ideia de como a etapa superior do comunismo funcionará quando tivermos a etapa inferior solucionada ou em processo de solução.
Existem modelos de empresas autogeridas pelos trabalhadores no capitalismo (worker cooperatives), mas estas costumam não ser competitivas contra empresas maiores, portanto exercem um papel similar ao da pequena-burguesia na organização capitalista, que é ocupar nichos de mercado onde a taxa de lucro é inferior à dos espaços onde a burguesia lucra. A tendência é que, à medida que a taxa de lucro social continue caindo (e ela tende a cair, historicamente), os grandes monopólios vão engolir cada vez mais estes mercados marginais para continuar extraindo lucro. Posso elaborar um pouco mais sobre isso depois, caso queira. Dito isto, a ideia é que não haja a competição voraz da anarquia de produção do capitalismo, e que a empresa possa atender às necessidades da sociedade como um todo após a superação da forma "motivação de lucro" (profit motive).
>sobre a religião em um estado socialistaAo longo do desenvolvimento da sociedade humana, a religião torna-se em média cada vez mais divorciada do Estado. Na Antiguidade, os governadores eram alegadamente eleitos por deuses e, de certa forma, semideuses. Na Idade Média, os governadores eram mortais que tinham o aval das instituições religiosas para governar, instituições religiosas que intermediam o contato de Deus com os mortais. Hoje, legisladores tomam inspiração de sua criação religiosa para passar leis que se adequem, de forma difusa, a alguns dogmas, mas o funcionamento do governo em si é secular e laico.
A espiritualidade em si ainda não é um fenômeno 100% compreendido pela humanidade. É plausível pensar que, mesmo em milhares de anos após a superação dos mitos religiosos, os humanos continuem adotando "pensamento religioso" acerca de fenômenos naturais, como probabilidades, a origem do universo, os fenômenos estocásticos, as pequenas coincidências da vida, e aquelas lacunas da fronteira da ciência que ainda não compreendemos. De todo modo, a prática religiosa pessoal é uma questão que sequer é política, se você remover a variável da perseguição religiosa.
Marx propôs um prisma de compreensão dos aspectos culturais da sociedade, incluindo a religião, como um ciclo de base e superestrutura que se alimentam retroativamente. É fato inegável que a religião, mesmo com suas escrituras milenares, tem sua prática contemporânea influenciada pelo nosso modo de produção e outros fatores culturais. Um exemplo que gosto sempre de dar é o aborto, que só se tornou esse escarcéu religioso todo a partir de um desenvolvimento histórico do século XX. Investigue a Bíblia Sagrada e verá referências à vida humana ter início no primeiro fôlego, e a descrição de concoções abortivas. O catolicismo tem o Papa como figura de autoridade institucional suprema, que é também um ser humano que cresceu e viveu no mesmo modo de produção que nós, e inevitavelmente tem seus vieses e sua interpretação espiritual influenciada por isto. Mesmo após superar um modo de produção por outro, a cultura do modo de produção antigo permeia como legado, e este legado não pode ser abolido à vontade. Uma etapa histórica da sociedade humana existe sobre outra, e não a vácuo. E a religião continuará sendo influenciada e moldada por modos de produção futuros, enquanto existir.
Na prática, houve algum nível de repressão de instituições religiosas no socialismo, no contexto onde estas instituições tentavam sabotar a revolução ao alinhar-se com a hegemonia capitalista. Alguns países foram longe demais neste sentido, como a Albânia de Hoxha. Outros foram muito cautelosos com esta questão, de forma a evitar restringir as liberdades indivuais e criar ressentimento entre a população religiosa, como a União Soviética de Lenin. Enfim, estas questões dependem muito de como as instituições religiosas reagirão a uma revolução. Eu penso que, no Brasil, haverá de se ter alguma supressão de nosso protestantismo por este ser uma fronte de controle estadunidense (já viu a divergência entre o que os católicos e os evangélicos pensam sobre Israel?), mas como você pode ver, isto não tem ligação ao elemento espiritual, é uma questão de disputa do poder político.
>sobre a moral, a ética, o direito, e a filosofiaMarx em vida era infame por cair em gargalhadas e aloprar com todo mundo que tentava argumentar de um ponto de vista moral. Apesar de ser filósofo por formação, Marx desdenhava da filosofagem barata e da filosofia anticientífica. "Filósofos por milênios ponderaram sobre o mundo, entretanto o ponto é mudá-lo", e tudo mais. A doutrina comunista é um rompimento com a filosofia Feuerbach e de Hegel: um materialismo menos metafísico, e uma dialética menos idealista. Ela não busca se sustentar em ética, e sim em condições materiais. O humanismo marxista é um desenvolvimento que parte do comunismo, mas que não se origina dele e nem o sustenta. Podemos conversar mais sobre isto também, caso queira.
Marx e Engels evitaram propositalmente prescrever como um sistema ético socialista deve ser, pois isso há de ser determinado pelas populações que atingirem estas etapas de desenvolvimento. A União Soviética teve suas formulações éticas, que hoje podemos observar como frutos de seu contexto histórico defasado. Teremos as nossas, quando a hora chegar, da maneira que forem. Isto vale também para a organização familiar (que não foi estática durante o desenvolvimento da história e mudou radicalmente com o capitalismo industrial) e o direito. Não há ponto em estabelecer uma conduta moral apriorística. Mas talvez eu esteja deixando meus antigos vieses nietzschianistas falarem mais alto aqui. E devo dizer que tudo isso é cabeludo e não é ponto unânime no campo marxista.