>>12696Sem problemas, tome seu tempo.
>sobre não buscar juízo de valorIsto significa não ser prescritivo. A doutrina comunista advoca pela superação do capitalismo, e o desenvolvimento leninista sugere meios de atingir esta superação (no contexto da Rússia no século XIX). Caso isto venha ocorrer, pois não é garantido, haverá de ocorrer da maneira que ocorrer, nos termos que forem possíveis, e onde ocorrer. Não podemos prever o futuro, não somos clarividentes, apenas observamos o nosso passado e enxergamos tendências. Tendências são sugestões do futuro, mas não um absoluto.
>Poderia citar outros exemplos particulares?Um outro exemplo citado por alguns, que eu particularmente não sou muito fã (mas compreendo o porquê de ser como é), é o modelo socialista chinês atual, que ainda tem uma economia de mercado e regras similares ao capitalismo no trabalho (pouca democracia no ambiente de trabalho, por exemplo), mas que tem tributação pesada do lucro por um Estado centralizado e (alegadamente) proletário, além de regras para os capitalistas e penas severas para o descumprimento destas. Uma curiosidade sobre a China: lá, a corrupção é crime passível da pena capital. Um terceiro exemplo seria o modelo de comunismo anarcossindicalista, onde sindicatos descentralizados assumem o papel do Estado e, portanto, as dinâmicas na organização do trabalho são um pouco diferentes i.e. a categoria geral toma precedência sobre uma empresa ou núcleo de operações específico. Certamente há outros, mas são exemplos meramente ilustrativos. Só saberemos qual modelo de organização de trabalho cabe melhor ao Brasil e suas regiões na hora que experimentarmos, pois nenhum estratagema sobrevive ao contato com o inimigo, e o mapa não é o território etc.
>Sei que parece uma pergunta meio boba, mas qual a diferença disso da nossa democracia atual? Quer dizer, a única diferença talvez seja que não é burguesa.Quando eu mencionei aquilo, eu estava falando especificamente da democracia no ambiente de trabalho, que não existe hoje no capitalismo. O mito de que um trabalhador pode simplesmente sair de um emprego para procurar outro melhor não bate com a realidade, por conta da dinâmica de exército industrial de reserva. Apenas uma parcela pequena e cada vez menor de trabalhadores (chamados de "aristocracia operária", que não é uma classe distinta do proletariado) tem este privilégio. O engenheiro sênior pode sair do Itaú e ir pro Nubank, se ele achar melhor, mas o repositor do Atacadão não tem muita escolha, pois essas posições têm uma disputa voraz por cada vaga de emprego.
Dito isto, no âmbito da política institucional, devo te lembrar que a democracia burguesa é uma farsa. Sugiro que dê uma olhada no quanto custa uma campanha política. Candidatar-se, assim como fazer seu nome ser conhecido e seriamente cogitado para uma base eleitoral, é proibitivamente caro. Qual classe tem o poder de se eleger, ou de escolher quem será eleito? Há incontáveis exemplos práticos disso. Mesmo se um candidato verdadeiramente proletário tivesse uma votação expressiva, este pode ser sabotado de várias maneiras, sejam elas institucionais (cassação, impeachment, inelegibilidade, prisão) ou não (difamação midiática, assassinato, sabotagem de alcance algoritmico, compra de votos).
>como seria o socialismo ideal nesse contexto [de regulamentação ou perseguição religiosa]?Os comunistas não lidam com o que é ideal, pois projetar no futuro um imaginário decidido aprioristicamente é uma prática idealista. Dito isto, o modelo de socialismo que defendo é um em que todo trabalhador mantém seus direitos particulares, contanto que estes direitos não passem sobre os direitos de outras pessoas (tipo estuprar ou chamar os outros de "pretinho" na rua). Se estes exemplos soam arbitrários, é porque, infelizmente, toda a noção de direitos é arbitrária (ou pelo menos, não é intrínseca a uma lei natural metafísica eterna). Até onde eu sei, isto é ponto comum entre outros comunistas. A prática religiosa não há de ser restrita por si, mas uma exceção importante é que os filhos dos religiosos não devem ser forçados ou coagidos a aderir à religião de sua família (mais sobre isto à frente no post).
>Basicamente [o socialismo] é uma substituição de classe pela outra, como aconteceu na Rev. Francesa.É precisamente isto. O termo "ditadura do proletariado" significa a opressão (repressão e supressão) institucional das classes trabalhadoras (proletariado e campesinato) sobre a burguesia após a tomada do poder instuticional. Isto não significa necessariamente uma campanha de execuções em massa como na Revolução Francesa, pois a perpetuação do poder burguês não depende da farsa de uma herança sanguínea. Significa expropriação gradual de seus meios de produção e distribuição. Significa transformá-los em mortais, como eu e você, e fazê-los trabalhar em empregos normais. Para um burguês, não existe nada mais assombrador do que trabalhar de igual para outros, em troca de salário, mesmo que em um emprego confortável de escritório.
>sobre a moralidade e o direitoA moralidade é um subproduto social. Em tempos antigos, o estupro de mulheres de territórios conquistados era visto como algo moral, pois o direito reprodutivo dos soldados foi conquistado através da luta. Em tempos modernos, a herança de propriedade é vista como algo moral, pois mesmo que você seja um vagabundo sustentado a vida inteira, certamente algum ancestral seu "trabalhou" por isso, abstratamente. A violência é vista como algo imoral, exceto quando é contra "quem merece": há pessoas perfeitamente pacíficas que passam a dizer que um bandido que é espancado, torturado e estuprado no cárcere "merecia mais e pior", a depender do crime.
Eu tenho pra mim (e note que isto é muito pessoal e potencialmente controverso) que toda noção de justiça é apenas um desejo indulgente de vingança e retribuição disfarçado com uma máscara de civilidade, ou até de inevitabilidade cósmica (ver: karma). Como anedota: já aconteceu comigo de eu ser assaltado, fazer o BO na delegacia, e depois ser informado que o bandido foi preso. Quando eu compartilhei isto com pessoas na minha vida particular, houve um tom de comemoração dos outros. Mas eu sinceramente não me importo se o bandido foi preso ou não, porque um bandido a menos na rua nunca foi garantia de menos crime no futuro. Eu só queria a droga do meu celular de volta, ou no mínimo ser ressarcido em seu valor em dinheiro. Eu não busco que o que me façam de mal seja retribuído, em proporção alguma, eu só quero que problemas sejam resolvidos ou revertidos e passem a acontecer menos futuramente.
>assintoticamenteCom isto, quis dizer que podemos nos aproximar da verdade infinitamente, mas nunca teremos ela de maneira 1:1, crua e concreta e garantida. Mesmo que tenhamos obtido uma verdade, não temos meios de verificação, sequer podemos saber com toda a certeza divinda e metafísica que uma verdade é mesmo verdade. Mas isto é baboseira filosófica, pois para nossa realidade material, aproximações da verdade funcionam bem o suficiente. Isto é verdade até para as ciências exatas. Estudantes de matemática caçoam de estudantes de física, que caçoam de estudantes de engenharia, por desprezar variáveis insignificantes de modo a tornar um cálculo mais prático. Pŕatico não significa "mais fácil", signiica "mais aplicável".
>sobre o direito soviéticoComo eu falei, a constituição da Rússia Soviética (e posteriormente da URSS) foi influenciada por seu contexto histórico. A próxima revolução socialista que ocorrer no mundo terá uma constituição diferente, mesmo que inspirada por ela. Os comunistas não são contra a noção de Direito em si, mas são céticos da noção de que a instituição é maior que o modo de produção e o contexto histórico. Como exemplo, Alexandre de Moraes e semelhantes tomam a institucionalidade jurídica e legal como deuses inquestionáveis, ao menos em discurso, pois legitimam seu poder nisto. Os comunistas não buscam se legitimar por uma constituição, apenas ter um código de leis que guie o comportamento civil e burocrático das gerações atual e futuras, e que possa ser modificado de acordo com o desenvolvimento da sociedade.
>sobre o fim da família ou fim da família burguesaUma caricatura que acho sinceramente engraçada é a que, em um governo comunista, crianças serão tomadas dos pais após a amamentação e serão criadas em centros militares para serem supersoldados lobotomizados que subjugarão o mundo livre (no caso, o Ocidente capitalista) em uma campanha satânica armagedônica.
Menos engraçada, mas que merece uma menção honrosa, é o pânico de que, após a revolução, os homens serão proibidos de ter um espaço particular com uma mulher e filhos que ama. Os homens "vão virar" mulheres, as mulheres "vão virar" homens, os filhos serão não-binários genderqueer (com os machos castrados ao nascimento), sua casa será habitada por um inspetor estatal drag queen, dois militantes do MTST, e cinco mendigos, sua religião será o culto à vagina, e sua vida será woke.
Marx e Engels falam sobre o fim (no caso, abolição, ou em uma tradução mais apropriada, superação) da família burguesa. Entre a burguesia, a família existe principalmente para garantir a transmissão de herança. O casamento é uma questão de interesse econômico, e a fidelidade da mulher é exigida não por sentimentalismo, mas para assegurar a legitimidade dos herdeiros, pois a mulher não é mais do que um instrumento de produção de herdeiros. As relações familiares existem em primeiro lugar para preservar o capital.
A família proletária também é distorcida pelo capitalismo, mesmo que em grau menor. A família ao longo do desenvolvimento da sociedade foi reduzida de tribos a clãs, a famílias estendidas e, eventualmente, a um núcleo de homem provedor, mulher subserviente, e prole (ou herdeiros). O homem trabalhador, explorado na fábrica, reproduz a dinâmica de exploração de classes em seu lar, onde ele é o burguês e sua mulher e filhos são os operários. A mulher é condenada a tomar frente do trabalho doméstico, que não é remunerado, e as crianças precisavam trabalhar para completar a renda da casa. O trabalho infantil ainda é realidade no Brasil para os setores mais miseráveis do campesinato.
A superação da família burguesa e do capitalismo significa, na prática, que você pode casar ou se separar com quem consentir, e esta(s) pessoa(s) não depende(m) financeiramente de você, e seus filhos não serão sua propriedade pessoal. Com isso, quero dizer que seus filhos não dependem financeiramente de você, pois têm seu sustento, saúde, e educação providos pela sociedade. Portanto, eles não precisam sofrer a pressão de te agradar coercitivamente, e podem te amar espontaneamente. Você terá mais tempo para passar com seus filhos, pois suas horas de trabalho serão muito reduzidas, mas você não será obrigado a ser babá dele sozinho com sua esposa, pois as crianças poderão também transitar em espaços públicos com segurança, sem medo de serem sequestradas, violentadas, feridas. Outros adultos poderão interagir com crianças de outras famílias, sem o stranger danger e todas as antissocialidades da vida moderna, pois no nosso contexto tribal, uma criança era criada por uma vila, e não por um par de assalariados neuróticos, vítimas de um sistema de exploração maior. Torna-se mais fácil dividir casa com seus pais ou sogros mesmo após ter filhos, em um contexto de amor e igualdade de poder entre pai e filho quando ambos são adultos, e estes poderiam ajudar com a criação dos filhos.
Eu não sou burguês, mas as condições particulares da minha vida me levaram a ter contato íntimo com filhos de famílias burguesas (burguesas com B maiúsculo, multimilionárias) e, como anedota, devo dizer que tudo que eles escreveram sobre a família burguesa confere. Engels era burguês, e Marx era renegado de uma família aristocrática e casado com uma mulher em posição similar, então acredito que, para eles, este ponto em particular foi uma dor profunda, vivida de forma pessoal.
>Há algum problema de um homem e uma mulher viverem um relacionamento monogâmico cristão numa sociedade socialista?Não. E me impressionaria se qualquer pessoa pensasse o contrário. Não é sua culpa, mas às vezes me choca como é o socialismo no imaginário coletivo do senso comum.